sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A SERVIDORA ABDUZIDA

Às cinco da manhã e já estava dando banho na neta, preparando a comida da filha, limpando o banheiro, varrendo a casa, fazendo a maquiagem, uma correria diária que desafiava seus 56 anos , mas com o corpinho da Madona, que Deus foi generoso com aquela alma recifense que agora vaga pelo planalto central do Brasil como corajosa servidora pública federal.

Era tudo bem cronometrado para dar tempo de caminhar rumo a estação Ceilândia do metrô, sem pestanejar, porque aquela era a cidade-satélite mais violenta do Distrito Federal, e não se podia vacilar, principalmente, em tempo de horário de verão quando tudo era a maior escuridão, e a bandidagem corria solta atrás das mulheres gostosas como ela.

Não podia passar por um prédio em construção sem ser ovacionada de pé pelo operarido que se esvaía em assobios e apupos, gostosa, gostosa, gostosa, esse é o remédio que o doutor me receitou, você lá em casa e eu começaria chupando pela maçaneta da porta, boa é a minha mãe que me botou no mundo você é ótima, e por aí vai...

Por isso não estranhou quando um garoto malhado de academia trocou olhares libidinosos com ela no metrô, naquela sexta-feira treze brasiliense, quando se espera tudo de ruim, metrô lotado, chuva forte lá fora, prenúncio de engarrafamento quando chegar a hora da integração com o ônibus, etc, etc, etc.

Sentiu aquele calafrio nas costas, a boca ficou seca, o coração disparou e passou a ouvir aquele frevo rasgado que sempre surgia na cabeça dela quando a emoção era muito forte, coisa de pernambucana de raça que se espalha na praça, na hora do vamos ver, e que não tem pra ninguém.

Eram cinqüenta e seis aninhos e lá vai fumaça, como já se disse aqui, mas o vigor era de uma quarentinha e trá-lá-lá; e Deusanira, ou Deusa para o pessoal mais chegado do Ministério da Integração, não era mulher de abrir de parada nenhuma, ainda mais quando se tratava de coisas do coração.

Pensou no frevo, pensou no santo, pensou na filha, pensou na neta, nos peitos, nas coxas, na bunda, estava tudo em cima, e encarou o garoto bombado de academia como quem diz venha, meu bem; venha, que aqui tem; venha, que você vai levar uma chave-de-perna inesquecível; venha, danado.

Foi quando os dois desceram na estação da rodoviária do Plano Piloto, um olhando para o outro, caminhando apressados, seguindo sem ver nada em volta, e levaram uma trombada de um motoqueiro na saída da estação, caindo cada um pro seu lado, ela mais ferida que ele, quase morta, levada sem esperança para a emergência do Hospital de Base.

Duas semanas em coma depois, quando abriu os olhos e enxergou a filha, a neta e o amante segurança do Ministério da Integração, contou tudo com todos os detalhes, que havia sido abduzida por et’s, numa tarde quente e seca, quando se preparava para sair da repartição, e veio um clarão e a levou para um casarão tipo o palácio do Itamaraty, cheio de enormes janelas.

Eram todos muito parecidos com árvores do cerrado, baxinhos mas firmes; que falavam uma língua como se fosse uma mistura de alemão com espanhol, dura mas sensual; que se comportavam como os políticos com suas mentiras deslavadas, dissimulados mas nem tanto.

E que um deles a engravidou numa noite de farra muito doida, com um Reginaldo Rossi na radiola de ficha, muito rum com coca, muita rapariga brega na gafieira, um cheiro de perfume de gardênia de arrombar, uma luz vermelha profundamente infernal, e cadê a camisinha, cadê a camisinha, cadê a camisinha?

Os três escutaram tudo calados. Baixaram a cabeça, rezaram duas ave-marias e cinco pai-nossos. O amante levou a história para a repartição em busca dos atestados para evitar o corte do pagamento. A filha assumiu a limpeza da casa. E a neta parou de encher o saco na hora de comer, que o ritmo da casa passou a ser outro sem Deusa, que partiu desta para uma melhor um mês depois.

Postado por Roberto Borges

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CIDÁLIO, O FAQUIR

Meses antes de casar, Dona Idelina confessava às amigas: teria três filhos. E todos os três seriam artistas. O fascínio pelo mundo das celebridades, cultivado desde a adolescência com a leitura das revistas especializadas em fofocas, se acentuou na fase adulta. Tal como imaginara, Dona Idelina casou com um artesão e, seriado, encomendou dois meninos e uma menina.

Desde cedo, as crianças foram induzidas e estimuladas para o universo das artes. Adolescentes, a doutrinação artística conduzida com mão-de-ferro por Dona Idelina prosseguiu. Uma missão cumprida, em parte: cada qual seguiu o seu caminho no campo artístico. Obviamente, nem tudo saiu como a matriarca na pureza de seus sonhos havia planejado para cada filho. Mas, enfim, o Brasil é, sem dúvida, um país de vocações desperdiçadas.

O mais velho, Cidrack, para quem a mãe idealizara uma brilhante carreira de pianista, no mínimo um novo Nelson Freire, tornou-se um amestrador de ursos. A última vez que se teve notícias dele foi há muito tempo, uns cinco anos. Cidrack foi visto numa região remota do Nordeste da China.

Cinara, a moça do meio, abandonou logo cedo as aulas de canto lírico. Uma grande frustração para dona Idelina que traçara para a filha uma réplica moderna de Maria Callas. Mas, nem tudo sai como se imagina. Hoje, Cinara sobrevive como stripper numa casa noturna de Praga, novo point dos descolados da Europa.

Já o filho mais novo, Cidálio, a última esperança artística da sensível senhora, desistiu da profissão de escultor. Logo Cidálio, cujas mãos, na opinião convincente de dona Idelina, se assemelhavam às do grande Rodin. Porém, a casa do Senhor tem várias moradas. Cidálio ganha a vida, honestamente, como faquir, um ofício para pouquíssimos. Otimista, Dona Idelina nunca foi mulher de reclamar. Por que se lamuriar da sorte? Pariu três filhos e os três são, cada um a seu modo, artistas.

E Cidálio, o faquir, tem tido relativo sucesso na profissão. Quando se instala na sua cama de pregos numa cidade do interior, arrasta multidões para vê-lo passar, estoicamente, até 50 dias sem colocar um pedaço de pão na boca. Só bebendo água.
Ultimamente, Cidálio conseguiu melhorar a renda, com a obtenção do patrocínio de algumas marcas de bebida energética. Afora as doações em dinheiro do público, que se impressiona com a sua resistência física. Quando os ventos estão soprando a seu favor, é possível até contar com a liberação de algum apoio financeiro das prefeituras.

Por falar em fortuna, nos últimos dias de mais uma longa temporada em absoluto jejum, Cidálio voltou a ser bafejado por ela. Conheceu uma moça tímida, jeito sedutoramente provinciano. Assim como o público, Cidele ficara realmente fascinada com a obstinação, a capacidade física e o sofrimento do faquir. Sempre que saía do escritório, dava uma passadinha na Praça da República, para conferir o desempenho do artista da fome.

No início, era só curiosidade. Mas, num final de tarde, adquiriu coragem e puxou conversa com o faquir, num momento em que ele já sentia dificuldades em se levantar da cama de pregos. Logo se tornou amiga do artista.

Quando Cidálio encerrou o espetáculo de jejum, Cidele estava lá, colada nas cordas. Foi uma das primeiras a puxar os aplausos. Depois das entrevistas para os jornais, e cessado o tumulto das pessoas que queriam conferir de perto a magreza esquelética do faquir, Cidele se aproximou. Parabenizou-o pelo sucesso e deu-lhe de presente um pote de doce.

¬¬¬¬¬¬¬___ É doce de casca de laranja da terra. Você gosta?

Um pequeno pedaço do doce foi o primeiro alimento que Cidálio colocou na boca depois de mais de um mês e meio de fome rigorosa.

Combinaram que, dentro de três ou quatro dias, quando Cidálio já estivesse recuperado da longa jornada na cama de pregos, voltariam a se encontrar.

Em menos de duas semanas, Cidálio e Cidele já estavam praticamente morando juntos na pensão onde o faquir ficara hospedado. Descobriram rapidamente que haviam nascido um para o outro. De fato, estavam felizes. Cidele também demonstrava disposição para seguir a vida do amante. Ajudaria na produção do espetáculo e recolheria as doações.

Com o apoio e praticidade de Cidele, a carreira profissional de Cidálio ganhou impulso. Depois de dezenas de apresentações pelo país afora, concordaram que precisavam ter uma casa para morar, um lugar fixo para recuperar as energias depois de cada temporada.

¬___ Uma casa pequena, mas que seja nossa, só nossa. Sem precisar dormir em quarto de pensão.

A relação harmoniosa do casal jamais era quebrada. Cidálio tinha um lado meio boêmio, provavelmente compensação psicológica ao ascetismo do faquirismo profissional. Compreensiva, Cidele era dessas mulheres desprovidas de ciúmes. Embora nunca escamoteasse os sentimentos, sejam quais fossem. Às vezes, deixava escapar uma frase mais forte, apenas com o intuito de demarcar território.

¬¬¬___ Não sou possessiva ou compulsiva. Mas, para mim, amor e sexo não são número ímpar.

Cidele gostava muito do trabalho de acompanhar Cidálio pelo mundo. Mas gostava ainda mais quando chegava em casa, depois de um longo período ausente. Num desses retornos, recebeu uma carta anônima, selada pelos Correios. O texto era claro, a sentença demolidora: Cidálio tinha uma amante. Encontrava-se com ela quando permanecia na cidade, no intervalo entre uma viagem e outra. A carta só veio reforçar uma antiga e irrevelada desconfiança da mulher do artista. Com mais frequência, Cidálio vinha se ausentando de casa, sempre alegando que precisava conseguir novos patrocínios.

Naturalmente, a carta a deixara descontrolada, com os nervos à flor da pele. Apesar disso, guardou-a. A muito custo, conseguiu dissimular o ódio, um sentimento que até então desconhecia, que passou a sentir pela traição conjugal de Cidálio. Mas, em nenhum momento, lhe perguntou nada ou deixou transparecer qualquer ressentimento. Manteve-se afetuosa, cuidando dos afazeres domésticos. A vida seguiu o seu rumo.

Uma noite, quando Cidálio chegou em casa, ligeiramente embriagado, Cidele o colocou para dormir, como sempre o fazia. Adormecido, o faquir só sentiu o primeiro golpe da machadada na cabeça. Teve morte imediata. Com frieza, Cidele esquartejou e retalhou todo o corpo do artista. Como se estivesse arrumando uma gôndola de supermercado. Embalou em papel-alumínio 64 pedaços desossados e colocou-os na geladeira duplex. Durante quase dois meses se alimentou apenas da carne do faquir. Com zelo de cozinheira profissional, sempre pensava alto quando ia preparar as refeições com os restos mortais. Uma cumplicidade mórbida que insistia em manter com o marido morto.

___ Vou temperá-lo, Cidálio, meia hora antes de colocá-lo no forno. É pra dar gosto.

Depois de ter devorado todo o corpo do faquir, Cidele disse para si mesma:

___ Agora, Cidálio, finalmente, capturei o seu espírito.

Na manhã seguinte, levou a cama de pregos que o faquir usava nas apresentações para o marceneiro reformá-la. E ordenou:

___ Quero que fique do tamanho exato do meu corpo.

A primeira apresentação de Cidele como faquir arrastou uma multidão numa pequena cidade de Pernambuco. Pela primeira vez, o público presenciava uma mulher como faquir. Portadora de admirável resistência física, Cidele, a exemplo de Cidálio, chegava a ficar até 50 dias sem alimentar.

Dois anos depois de percorrer todo o Nordeste, Cidele havia encerrado a última noite da temporada de jejum, quando um rapaz se aproximou dela. Embora vagamente lhe lembrasse alguém, ela não conseguia identificar com quem o jovem se assemelhava. Simpático, o rapaz a parabenizou pelo espetáculo, elogiou a perfomance e a resistência física, e deu-lhe de presente um pote de doce:

___ É doce de casca de laranja da terra. Você gosta?

Postado por Amin Stepple

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O MENINO E O TIO BÊBADO DO SPORT

Era a primeira vez que via um homem de terno e gravata, de cócoras, chorando no quintal de casa.

Chegou mais perto e olhou, olhou, olhou, foi se aproximando com um medo cada vez maior...

O tio não tomava jeito mesmo, enchia a cara, e aprontava cada uma; até que muitas, às vezes, bem engraçadas.

Mas daquela vez ficou realmente chocado em ver aquele homem tão bom para ele naquela cena deprimente, e recebeu um sinal.

Bem mais próximo, rosto quase colado ao do tio, quis saber o por quê, e ganhou as costumeiras bolas de gude.

Meia dúzia delas num saco de papel amassado com o símbolo do Sport Recife - o papai da cidade.

Os dois torciam pelo Sport, e o tio não falhava nunca, toda vez que aparecia, trazia as bolinhas.

Vermelhas e pretas, as cores do Leão da Ilha, que levavam os dois a uma cumplicidade profunda.

Nem deu tempo de segurar as bolinhas e a mãe já gritou ordenando que ele entrasse para o terraço.

Que deixasse o tio em paz, que aquilo não era assunto pra menino, que estava na hora do banho.

Fez que saiu para o banho e ficou escutando toda a conversa entre a mãe e o tio escondido no terraço.

E ouviu que daquela vez o tio ía se matar de verdade porque a esposa havia fugido com os filhos.

E que a vida não tinha mais nenhum sentido para um homem sem emprego sem lar sem nada.

E que a reação da mãe era a mesma de sempre, no começo reclamava, reclamava e depois fazia as pases.

Lembrava ao tio que ele ainda tinha a ela, mais a mãe deles dois, e que eram uma família unida.

E que ele parasse de beber, pensasse na esposa e nos filhos dele, que a vida era assim de altos e baixos.

Mas para ele havia algo de novo ali e que não iria terminar bem, pois nunca vira o tio e a mãe assim.

Os dois pareciam cansados daquilo, quase toda semana ela saía à procura dele pelas ruas.

E o encontrava dormindo nas calçadas, bêbado, bêbado, de dar pena aos passantes que vinham avisar.

Ela chamava o filho e os dois saíam pelo bairro atrás do bêbado, rezando para encontrá-lo com vida.

O menino cantava o hino do Sport, em silêncio, como numa reza baixinha, toda vez que encontravam o tio.

O resgate era patético, ele todo vomitado, às vezes mijado, com fezes, e a irmã dava banho, limpava ele todo.

O menino ajudando, com medo, com nojo, com pena, com vontade de fechar os olhos e sumir dali.

Sem saber ainda que haveriam momentos muito mais difíceis como os que enfrentou no manicômio.

O tio terminou sendo internado num asilo de loucos e os dias de visitas, aos domingos, eram um inferno.

Muitos doidos em volta até chegar ao tio cabisbaixo, sempre calado, sem as bolinhas do Sport.

A mãe acariciava a cabeça do irmão com carinho e dizia baixinho que tudo iria passar, que, enfim...

O menino ficava olhando, olhando, mas não se aproximava muito, preferia lembrar dos dois vibrando nos gols do Sport.

E foi assim a vida dos três por um longo e sofrido período de resgates e internações e delírios e convulsões.

Mas ao ver o tio, como agora, pela fresta da parede do terraço, acocorado no quintal, de terno, sentiu o sinal num calafrio.

Foi como naquele gol contra do Sport que calou a Ilha e deixou tio e sobrinho na lona total.

Nem o tio nem a irmã aguentavam mais tanta humilhação na vizinhança, que aquilo não era vida.

Correu para o banheiro logo depois que a mãe despachou o tio para a casa dele debaixo de esporros.

No outro dia, a empregada do tio apareceu com a notícia de que ele tinha bebido veneno pra rato.

Foi ao enterro com as bolinhas de gude rubro-negras e atirou-as uma a uma no caixão do tio, rezando o hino do Sport.

Cazá, cazá, cazá, cazá, cazá, a turma é mesmo boa, é mesmo da fuzarca, Sport, Sport, Sport, assim mesmo, bem baixinho...

Postado por Roberto Borges

O TAMPA DE CRUSH

Sabe aquele sujeito que, depois dos 40, fica com a idade meio indefinida, e ninguém ao certo faz ideia de quantos anos ele tem? É o caso de Amorim. Genética privilegiada, tendência à longevidade, qualquer palpite sobre o ano em que nasceu é tiro na água. Simpático, conversador, largo e diversificado círculo de amizades. Qualidades inquestionáveis de Amorim. Profissão, ofício, de onde provem o sustento?

___ Vivo de rendas.

De fato, Amorim era rico de berço. A indefinição etária facilitava a imaginação de Amorim, notável contador de histórias. Em momento algum deixava margens para que duvidassem da veracidade dos acontecimentos dos quais participou. Juarez, um dos interlocutores mais assíduos, não assimilava a vida rocambolesca do amigo:

___ Amorim é um mitômano. Um caso perdido, patológico.

Mas, entre as feras, havia um crédulo, Mesquita, amigo do peito e admirador confesso de Amorim e de sua vida atribulada. Na defesa, implacável:

____ É inveja. Amorim sempre foi um aventureiro. Uma espécie de testemunha ocular de fatos importantes. Não teve a vidinha monótona, sedentária desses frustrados.

Entre verdades ou mentiras, a conversa de Amorim era quase uma aula de história do Século XX. Ele sempre como protagonista, claro. O curioso é que sempre afirmava que estava lá, naquele exato momento, por mera fatalidade, coisa de destino.

Pracinha da FEB, Amorim participou da tomada de Monte Castelo, na Itália. No finalzinho da guerra, chegou a Paris, a tempo de ainda assistir à libertação da capital francesa. Uma das mais famosas fotografias da festa de libertação é a de um casal se beijando numa rua de Paris. O instante fotográfico ainda hoje corre mundo. Amorim garante. Foi ele que, passando pelo local, mostrou a cena a um fotógrafo, ali de bobeira.

___ Percebi na hora que aquela imagem do casal se beijando na boca significava o fim da guerra, o símbolo dos novos tempos de paz e amor. Eu disse para o cara: esta é a imagem. O interessante é que não só o instantâneo ficou famoso, mas também o fotógrafo, um tal de Cartier-Bresson. Por coincidência, eu estava lá.

Apaixonado por futebol, Amorim deixava a rodinha de amigos extasiada e cheia de interrogações quando o assunto resvalava para a trágica derrota do Brasil para o Uruguai, na Copa do Mundo de 50.

___ Nessa época, eu residia no Rio. E fui um dos primeiros a sair do Maracanã depois da derrota.

O silêncio tomava conta de toda a cidade. No Estácio, onde morava, Amorim foi afogar o sentimento de fracasso coletivo. Começou a beber. Queria esquecer aquele domingo terrível para a pátria. Duas horas depois, entrou no bar um homem visivelmente arrasado, cabisbaixo, cara de choro. Amorim logo o reconheceu. Era Barbosa, o goleiro da seleção que deixou passar dois gols do ataque do Uruguai.

___ Respeitei a dor dele. Mas, você sabe, a bebida relaxa e tomei a iniciativa. Se havia alguém que poderia consolar Barbosa era eu. Simples, o bar estava vazio e apenas nós dois ali, enchendo a cara.

Barbosa se martirizava, em especial com o segundo gol, de Gighia, o atacante e carrasco uruguaio. Ele se culpava, recontava o lance a todo momento, como se quisesse tentar impedir o avanço do artilheiro e o chute implacável no canto esquerdo da trave. Digno, Barbosa se negava a culpar Bigode, o lateral esquerdo da Seleção, que falhou nos lances de gol. Ele achava que engolira um tremendo frango. Só restava a Amorim consolar o grande goleiro do escrete nacional.

___ Barbosa, os deuses já tinham decidido que o Uruguai seria o campeão do mundo. Eles costumam se irritar quando veem festa antecipada.

Amorim colocou Barbosa num táxi. E ainda hoje ele se comove com a profunda expressão de tristeza no rosto do goleiro da seleção.

Os amigos sabem que Amorim mexeu com exportação e importação de algodão. E que viajava com frequência para Liverpool. Foi na cidade portuária da Inglaterra que ele fez amizade com um jovem empresário, Brian Epstein. Corria o ano de 1962.

___ Veja o que é coincidência. Depois de fechar uns negócios na Bolsa de Algodão, fui tomar um drinque num bar perto do escritório, na Matthew Street. Foi lá que conheci o Brian.

Brian Epstein, empresário de um grupo de rock, convidou Amorim para assistir à primeira apresentação dos roqueiros numa boate que existia ali perto, a Cavern Club. Apesar do ambiente fumacento e do barulho excessivo, Amorim gostou muito da performance e da musicalidade dos rapazes.

___ Depois do show, voltei a conversar com Brian. Perguntei para ele: você viu as fotos da revolução cubana? Os guerrilheiros são todos cabeludos. A moda agora é cabelo grande. Sugiro que os rapazes também fiquem cabeludos. E ainda arrisquei: você ainda vai ganhar muito dinheiro com esse grupo. O nome da banda: The Beatles.

A morte polêmica de John Kennedy ainda hoje rende reportagens quilométricas. Amorim tinha um amigo que morava no Texas, desses fazendeiros de chapelão na cabeça. Em novembro de 1963, Amorim foi convidado por ele para assistir a uma exposição de gado. Os touros do pecuarista eram famosos em toda a região. No dia em que Lee Oswald atirou em Kennedy, Amorim, por acaso, passava no exato momento pelo local da tragédia, em Dallas.

___ Quando ouvi o primeiro tiro, me escondi atrás de uma árvore. Olhei para um prédio que ficava em frente. Não o que estava Lee Oswald, mas outro, quase ao lado. Eu estava a poucos metros. Olhei para cima e pude ver claramente um fuzil. Corri para a rua e gritei bem alto, apontando na direção da janela. Quando me viu, o sujeito recolheu a arma e sumiu da janela.

Amorim escreveu um longo relatório para a Comissão Warren, a que investigou a morte de Kennedy. Ele mostrou que tinha meios de provar a existência de um segundo atirador, ainda hoje um mistério não esclarecido no episódio de Dallas. No relato, deixa claro que o segundo franco-atirador estaria mirando em Jackeline, a bela esposa do presidente. A Comissão Warren enviou uma carta agradecendo a Amorim as informações sobre aquele dia fatídico na história dos Estados Unidos. Para consolo, a Comissão reiterou que todas as hipóteses estavam sendo investigadas.

Certa manhã de agosto, Amorim foi ao banco no centro do Recife. Ia fazer um saque. Ao chegar em frente à agência, percebeu que ocorria um assalto. Bandidos e policiais começaram a trocar tiros. Uma bala perdida atingiu em cheio o tórax de Amorim.

Socorrido de imediato, Amorim foi levado para a sala de cirurgia. Quase inconsciente, ainda compreendeu que tinha sido vítima da má pontaria dos assaltantes ou dos agentes da Lei, não se sabe. Antes de morrer, sussurrou para o médico:

___ Por coincidência, eu estava lá.

No enterro de Amorim, apenas um amigo discursou. O seu único e fiel admirador, Mesquita. Ele ressaltou as qualidades do caráter de Amorim, relatou detalhes da vida intensa que ele tinha levado, recordou os fatos em que fora comprovadamente protagonista e encerrou a homenagem com uma frase que ratificava o gosto pela aventura do saudoso amigo:

___ Amorim era um tampa de crush. Lamentavelmente, abusou da sorte.

Postado por Amin Stepple

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

SEVERINA SHAKESPEARE DA SILVA

Vou vender água mineral na Rodoviária mas não me vendo, não sou qualquer uma. Compro o copinho no mercado a cinquenta centavos e vendo por um real aos passageiros. Ganho 100%.

Mas para o serviço público não vou. Não vou morrer numa repartição pública. Eu sou uma artista, preciso respirar, ser livre, não ter hora pra entrar nem para sair nem para nada.

E a mãe respondia com o mesmo amor de sempre que o pai dela já havia morrido gastando o que não tinha em teatro e que as duas precisavam se virar que a vida não era fácil pra quem decidia viver de arte.

Biusinha respirava fundo e repetia que ainda seria uma atriz. E de peças clássicas, Brecht, Strindberg, Beckett, mesmo morando na periferia de Brasília, pobre, pobre, pobre de dar dó, coitada, que aquilo não era vida.

Severina Shakespeare da Silva. De pai teatrólogo fracassado cearense e mãe artista plástica pernambucana fracassada também. Por isso crescera ouvindo Pavarotti, Chopin, Beethoven, na maior pindaíba.

A família veio do Nordeste em busca do paraíso prometido pela propaganda enganosa da construção da nova capital. Quando o casal chegou, Brasília era só barro vermelho, lama, vazio, tédio.

O padre não quis batizar Biusinha com aquele nome estranho, mas no cartório foi mole, os pais conseguiram prestar a homenagem merecida ao teatrólogo maior da humanidade.

Na escola é que era chato, ninguém sabia pronunciar direito, sheike o quê?, espíare?, espia? Foi assim até virar gente entendida e passar a achar graça naquela comédia que era a vida.

Fez escola pública direitinho, sem faltar um dia, aguentando o besteirol todo com dignidade, a ausência dos professores, as carteiras quebradas, os banheiros imundos.

Mas era no quarto do barraco do Gama, cidade-satélite de Brasília - onde foram parar depois da construção da capital - que Biusinha era rainha. Lia toda a bibliografia teatral que caía em suas mãos.

Encontrou numa lixeira da Esplanada dos Ministérios uma coleção maravilhosa com os maiores clássicos do teatro mundial. Coisa dos espíritos, milagre de Jesus, macumba do santo, sei lá o que foi.

Ainda tentou devolver ao pessoal do Teatro Nacional onde estava a lixeira da Esplanada, sem êxito, pode levar, não temos mais espaço aqui, vai como doação, menina, caia fora, suma daqui.

No barraco, a mãe desenhava, mas vivia mesmo do emprego de merendeira na escola pública onde a filha aprendera a ler; viúva, e com o maior medo de que a filha não servisse pra nada na vida, além de uma saudade arretada das maluquices do marido teatrólogo.

Ele escreveu peças que nunca foram montadas, guardava tudo numa caixa grande de papelão que ela queimou depois da morte dele, que, aliás, foi uma dádiva, um sossego pra duas, pois ele gastava todo salário de porteiro de ministério da Justiça em cachaça, na malvada cinquenta e um.

Mas retomemos ao início para acrescentar que Biusinha discutia com a mãe por causa de um emprego público de servente que acabara de ser oferecido pelo diretor da escola. Era pegar ou largar, não haveria outra boa oportunidade como aquela, minha filha, juízo, juízo.

Biusinha passaria fácil, fácil no concurso público, mas sabe como é coração de artista, ninguém domina, não tem comando, bate muito depressa que deixa sem fôlego tudo em volta, razão, juízo, medo, paixão, dor, agonia, desgraça, sufoco.

E ainda mais agora que ela acabara de ler uma peça do Nélson Rodrigues e se imaginara fazendo a personagem, num lindo dia de casa cheia, o pai assistindo, agora abstêmio, a platéia caladinha, caladinha, diante da genialidade febril das cenas perfeitas.

Olhou pra mãe como quem não se importa se um raio cair na cabeça naquele momento, respirou aquele ar que vem do fundo da alma e, pediu tempo, intervalo, em respeito ao medo das duas do futuro.

Apenas adiou a resposta para mais tarde, afinal era difícil, muito difícil, para uma atriz, aceitar ali, naquele momento, que passaria o resto da vida varrendo o chão de uma escola, assinando o ponto, como de fato aconteceu.

Postado por Roberto Borges

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A OUTRA (NADA SE PERDE...)

A vida de Zé Carneiro não era fácil. Residente da Casa dos Estudantes, cursava Química numa universidade pública. Dinheiro curto, mal dava para as refeições. Diversão só nas baladas, que de vez em quando rolavam. Numa delas, Zé Carneiro conheceu Cristiane, recepcionista numa clínica médica.

___ Moça inteligente, desenrolada, urbana.

Além da paixão, o encontro com Cristiane mudou para melhor a precária vida de estudante de Zé Carneiro. A mãe da moça gostou dele logo de cara. E mais um prato na mesa da família que morava numa casa antiga de subúrbio passou a ser obrigatório. D. Janete sabia que o cardápio da Casa do Estudante não atendia ao apetite daquele rapaz que viera do sertão se formar na capital.

Em menos de dois anos, Zé Carneiro, apaixonado, deu um passo à frente. Entregou a Cristiane uma aliança de compromisso. Ninguém ficou mais feliz do que D. Janete:

___ Ele é um rapaz bom, de futuro, e vai fazer a felicidade de minha filha.

Casamento só quando se formasse. Assim pensava Cristiane. Pouco vocacionado, Zé Carneiro viu os colegas concluírem o curso, enquanto ele se arrastava entre as complicadas fórmulas de Química. De temperamento tranquilo, Cristiane não era dessas moças apressadas, do tipo louca pra casar. Sabia esperar.

___ Tudo tem seu tempo.

Para espanto e desespero de D. Janete. A velhota não via a hora de ver a filha subir ao altar, com todo o ritual religioso.

Mais alguns anos de faculdade, e Zé Carneiro, enfim, obteve o diploma. Foram duas festas numa só: a da formatura e a do noivado. D. Janete estava radiante num vestido vermelho comprado há mais de 20 anos.

___ Casamento só quando Zé Carneiro arranjar um emprego.

Era a justificativa de Cristiane para a família.

Dois anos depois de formado, o rapaz conseguiu um emprego na Coca-Cola como auxiliar químico. Montou um pequeno apartamento e decidiu que, questão de tempo, compraria as coisas de casa e pediria Cristiane em casamento.

A mãe da moça ficou exultante com a notícia.

Certo dia, Zé Carneiro fez as contas. Entre namoro e noivado, já haviam se passado mais de 10 anos. Estava na hora de tomar a grande decisão. Convidou Cristiane para jantar. Informou-lhe que não tinha mais razão adiar a data do casamento.

___ Não posso mais lhe fazer esperar.

A moça ouviu atentamente as ponderações do noivo. Mas, para surpresa de Zé Carneiro, tirou da bolsa uma fotografia de uma bela jovem morena. Com a voz demonstrando certo nervosismo, falou:

___ Eu não posso mais te enganar. Esta aqui é o grande amor da vida, Leninha. Quando eu te conheci, eu e ela já namorávamos. Infelizmente, não posso mais continuar com você. Não é justo.

Transtornado, perplexo com a confissão de Cristiane, Zé Carneiro só teve forças para fazer-lhe um pedido, em tom de súplica. Que deixasse com ele o retrato de Leninha:

___ Quero guardar comigo alguma lembrança deste momento em que meu coração está tão dilacerado.

D. Janete quase morre quando soube do rompimento. Jamais conseguiu compreender o fim daquele quase casamento.

Já Zé Carneiro passou a beber, com gosto e vontade. Carregava sempre na carteira duas fotografias: a de Cristiane e a da namorada dela. Às vezes, quando ficava nostálgico, mostrava aos amigos as fotos. Com a voz embargada, apontava:

___ Essa é a namorada de Cristiane.

Uma noite, Zé Carneiro estava bebendo no Bar Central. Uma bela moça morena se aproximou e perguntou-lhe, sedutora e cínica:

___ Você ainda guarda a minha foto que Cristiane lhe deu?

Foi amor à primeira vista. Leninha, a moça da foto, contou que estava solteira. O romance entre ela e Cristiane havia chegado ao fim, há algum tempo.

___ Cristiane está em outra.

Em menos de um mês, Zé Carneiro saiu do emprego na Coca-Cola e pediu a moça da foto em casamento. Foram morar na cidade dele, no sertão. Os negócios estão indo bem. Leninha toma conta da mercearia. E ele empresta dinheiro a juros.

Nas noites mais quentes, os vizinhos sempre escutam a moça da foto urrar, de prazer:

___ Ai, minha nossa senhora, como se deixa um homem desse.

Postado por Amin Stepple

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O PORTEIRO MOISÉS, NÃO O BÍBLICO

O rádio estava certo, chovia muito no Recanto das Emas, uma das mais recentes cidades-satélites de Brasília que, até há bem pouco tempo, pouquíssimo tempo mesmo, era um miserável acampamento transformado agora pelos políticos num caldeirão eleitoreiro.

Ele já estava acostumado com aquela estratégia dos caciques locais, incentivavam a migração desenfreada, e os pobres vinham com seus barracos seus filhos suas doenças e suas esperanças, formando logo, logo uma comunidade desvalida que virava cidade e elegia seus padrinhos políticos.

Por isso, instalou-se no Recanto ainda na fase das ocupacões de terrenos, quando teve o barraco derrubado, levou bordoada da polícia, deu entrevista na tv reclamando seus direitos, saiu na capa do jornal levando uma gravata junto com outros colegas invasores...
Mas alguns poucos anos depois e já estava instalado num lote de papel passado em cartório, carnê de iptu, conta de luz e tudo que se pode definir como moradia. Claro que, na cidade, ainda faltavam algumas coisitas essenciais, tais como escola, posto de saúde, delegacia, mas que os deputados distritais prometiam chegar logo, logo.

E ele lá dentro daquele inferno na batalha para se virar. Foi quando resolveu criar sua própria igreja. Por que não? Era preciso muita fé, muita oração, para sobreviver naquele gueto às margens da capital federal. Olhou em volta, e a chuva castigava os frágeis barracos do Recanto. Dia de tromba d'água brasiliense. Sai de baixo.

Mas para ele era um dia lindo para se lançar uma sementinha no coração dos sofridos vizinhos. Que chuva maravilhosa, meu bom Jesus, quantos trovões, relâmpagos, é o sinal de Deus, é o sinal do altíssimo, vejam, ouçam, entendam que a hora está chegando...
E saiu gritando pelas ruas esburacadas, livrando-se das poças, escondendo-se dos raios, sem camisa, com uma bíblia na mão, um copo com água na outra colhendo os pingos, correndo, correndo, correndo, como se tivesse perdido o juízo.

Foi a primeira grande aparição de Bebel, o antibelzebu, o pastor e líder da nova Igreja Celular da Graça do Divino Enviado, a ICGDE, com seus iniciais cinco adeptos. Não precisava de muita gente agora, pois queria entender muita coisa ainda, antes de começar a ampliar o império.

O problema maior é que não sabia ler. Era louco pra saber das histórias bíblicas no original e não só contadas pelos pastores concorrentes. Gastava muita memória ouvindo as pregações das redondezas, para repetir nos cultos da ICGDE, mesmo que fosse para apenas cinco adeptos. Eram seis com ele. Vizinhos que estavam indecisos do ponto de vista religioso e que acabaram cedendo à honírica visão dele se esbaforindo durante a tromba d'água.

Mesmo assim levava R$ 1,99 de cada adepto nas sessões do fala que eu te escuto, que já dava para o lanche comunitário dos domingos e para o cigarro escondido e para a coca-cola diária da tarde. Precisava aprender novas histórias daquele livro maravilhoso que não conseguia ler, e que, quase perdeu no meio da marcante tempestade.

Como não tinha muito tempo, resolveu inventar casos que teriam ocorrido com Abraão, Josué, Noé, Moisés, essa turma. Acabara de ver num telejornal da tv, uma série de reportagens sobre Abraão, feita por um jornalista enviado especial à terra santa, contando detalhes da vida e obra daquele santo homem.

Mas deu galho. Coisa boba, mas deu. Um tal de Moisés, porteiro de ministério, concursado, ou seja, autoridade no Recanto, achou que era com ele aquela história de abrir o mar vermelho pra toda a rapaziada entrar, e encheu Bebel de bolachas na frente de todos os cinco fiéis. O Moisés, o da portaria, provou que não era fruta coisa nenhuma e que o pastor fosse enganar em outro lugar, não no Recanto das Emas, que era terra de macho fiel.

Postado por Roberto Borges