segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O TAMPA DE CRUSH

Sabe aquele sujeito que, depois dos 40, fica com a idade meio indefinida, e ninguém ao certo faz ideia de quantos anos ele tem? É o caso de Amorim. Genética privilegiada, tendência à longevidade, qualquer palpite sobre o ano em que nasceu é tiro na água. Simpático, conversador, largo e diversificado círculo de amizades. Qualidades inquestionáveis de Amorim. Profissão, ofício, de onde provem o sustento?

___ Vivo de rendas.

De fato, Amorim era rico de berço. A indefinição etária facilitava a imaginação de Amorim, notável contador de histórias. Em momento algum deixava margens para que duvidassem da veracidade dos acontecimentos dos quais participou. Juarez, um dos interlocutores mais assíduos, não assimilava a vida rocambolesca do amigo:

___ Amorim é um mitômano. Um caso perdido, patológico.

Mas, entre as feras, havia um crédulo, Mesquita, amigo do peito e admirador confesso de Amorim e de sua vida atribulada. Na defesa, implacável:

____ É inveja. Amorim sempre foi um aventureiro. Uma espécie de testemunha ocular de fatos importantes. Não teve a vidinha monótona, sedentária desses frustrados.

Entre verdades ou mentiras, a conversa de Amorim era quase uma aula de história do Século XX. Ele sempre como protagonista, claro. O curioso é que sempre afirmava que estava lá, naquele exato momento, por mera fatalidade, coisa de destino.

Pracinha da FEB, Amorim participou da tomada de Monte Castelo, na Itália. No finalzinho da guerra, chegou a Paris, a tempo de ainda assistir à libertação da capital francesa. Uma das mais famosas fotografias da festa de libertação é a de um casal se beijando numa rua de Paris. O instante fotográfico ainda hoje corre mundo. Amorim garante. Foi ele que, passando pelo local, mostrou a cena a um fotógrafo, ali de bobeira.

___ Percebi na hora que aquela imagem do casal se beijando na boca significava o fim da guerra, o símbolo dos novos tempos de paz e amor. Eu disse para o cara: esta é a imagem. O interessante é que não só o instantâneo ficou famoso, mas também o fotógrafo, um tal de Cartier-Bresson. Por coincidência, eu estava lá.

Apaixonado por futebol, Amorim deixava a rodinha de amigos extasiada e cheia de interrogações quando o assunto resvalava para a trágica derrota do Brasil para o Uruguai, na Copa do Mundo de 50.

___ Nessa época, eu residia no Rio. E fui um dos primeiros a sair do Maracanã depois da derrota.

O silêncio tomava conta de toda a cidade. No Estácio, onde morava, Amorim foi afogar o sentimento de fracasso coletivo. Começou a beber. Queria esquecer aquele domingo terrível para a pátria. Duas horas depois, entrou no bar um homem visivelmente arrasado, cabisbaixo, cara de choro. Amorim logo o reconheceu. Era Barbosa, o goleiro da seleção que deixou passar dois gols do ataque do Uruguai.

___ Respeitei a dor dele. Mas, você sabe, a bebida relaxa e tomei a iniciativa. Se havia alguém que poderia consolar Barbosa era eu. Simples, o bar estava vazio e apenas nós dois ali, enchendo a cara.

Barbosa se martirizava, em especial com o segundo gol, de Gighia, o atacante e carrasco uruguaio. Ele se culpava, recontava o lance a todo momento, como se quisesse tentar impedir o avanço do artilheiro e o chute implacável no canto esquerdo da trave. Digno, Barbosa se negava a culpar Bigode, o lateral esquerdo da Seleção, que falhou nos lances de gol. Ele achava que engolira um tremendo frango. Só restava a Amorim consolar o grande goleiro do escrete nacional.

___ Barbosa, os deuses já tinham decidido que o Uruguai seria o campeão do mundo. Eles costumam se irritar quando veem festa antecipada.

Amorim colocou Barbosa num táxi. E ainda hoje ele se comove com a profunda expressão de tristeza no rosto do goleiro da seleção.

Os amigos sabem que Amorim mexeu com exportação e importação de algodão. E que viajava com frequência para Liverpool. Foi na cidade portuária da Inglaterra que ele fez amizade com um jovem empresário, Brian Epstein. Corria o ano de 1962.

___ Veja o que é coincidência. Depois de fechar uns negócios na Bolsa de Algodão, fui tomar um drinque num bar perto do escritório, na Matthew Street. Foi lá que conheci o Brian.

Brian Epstein, empresário de um grupo de rock, convidou Amorim para assistir à primeira apresentação dos roqueiros numa boate que existia ali perto, a Cavern Club. Apesar do ambiente fumacento e do barulho excessivo, Amorim gostou muito da performance e da musicalidade dos rapazes.

___ Depois do show, voltei a conversar com Brian. Perguntei para ele: você viu as fotos da revolução cubana? Os guerrilheiros são todos cabeludos. A moda agora é cabelo grande. Sugiro que os rapazes também fiquem cabeludos. E ainda arrisquei: você ainda vai ganhar muito dinheiro com esse grupo. O nome da banda: The Beatles.

A morte polêmica de John Kennedy ainda hoje rende reportagens quilométricas. Amorim tinha um amigo que morava no Texas, desses fazendeiros de chapelão na cabeça. Em novembro de 1963, Amorim foi convidado por ele para assistir a uma exposição de gado. Os touros do pecuarista eram famosos em toda a região. No dia em que Lee Oswald atirou em Kennedy, Amorim, por acaso, passava no exato momento pelo local da tragédia, em Dallas.

___ Quando ouvi o primeiro tiro, me escondi atrás de uma árvore. Olhei para um prédio que ficava em frente. Não o que estava Lee Oswald, mas outro, quase ao lado. Eu estava a poucos metros. Olhei para cima e pude ver claramente um fuzil. Corri para a rua e gritei bem alto, apontando na direção da janela. Quando me viu, o sujeito recolheu a arma e sumiu da janela.

Amorim escreveu um longo relatório para a Comissão Warren, a que investigou a morte de Kennedy. Ele mostrou que tinha meios de provar a existência de um segundo atirador, ainda hoje um mistério não esclarecido no episódio de Dallas. No relato, deixa claro que o segundo franco-atirador estaria mirando em Jackeline, a bela esposa do presidente. A Comissão Warren enviou uma carta agradecendo a Amorim as informações sobre aquele dia fatídico na história dos Estados Unidos. Para consolo, a Comissão reiterou que todas as hipóteses estavam sendo investigadas.

Certa manhã de agosto, Amorim foi ao banco no centro do Recife. Ia fazer um saque. Ao chegar em frente à agência, percebeu que ocorria um assalto. Bandidos e policiais começaram a trocar tiros. Uma bala perdida atingiu em cheio o tórax de Amorim.

Socorrido de imediato, Amorim foi levado para a sala de cirurgia. Quase inconsciente, ainda compreendeu que tinha sido vítima da má pontaria dos assaltantes ou dos agentes da Lei, não se sabe. Antes de morrer, sussurrou para o médico:

___ Por coincidência, eu estava lá.

No enterro de Amorim, apenas um amigo discursou. O seu único e fiel admirador, Mesquita. Ele ressaltou as qualidades do caráter de Amorim, relatou detalhes da vida intensa que ele tinha levado, recordou os fatos em que fora comprovadamente protagonista e encerrou a homenagem com uma frase que ratificava o gosto pela aventura do saudoso amigo:

___ Amorim era um tampa de crush. Lamentavelmente, abusou da sorte.

Postado por Amin Stepple

Um comentário:

  1. Existem mentiras (ou pelo menos histórias que parecem mentira) que são divertidas demais para serem censuradas.

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