sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O PORTEIRO MOISÉS, NÃO O BÍBLICO

O rádio estava certo, chovia muito no Recanto das Emas, uma das mais recentes cidades-satélites de Brasília que, até há bem pouco tempo, pouquíssimo tempo mesmo, era um miserável acampamento transformado agora pelos políticos num caldeirão eleitoreiro.

Ele já estava acostumado com aquela estratégia dos caciques locais, incentivavam a migração desenfreada, e os pobres vinham com seus barracos seus filhos suas doenças e suas esperanças, formando logo, logo uma comunidade desvalida que virava cidade e elegia seus padrinhos políticos.

Por isso, instalou-se no Recanto ainda na fase das ocupacões de terrenos, quando teve o barraco derrubado, levou bordoada da polícia, deu entrevista na tv reclamando seus direitos, saiu na capa do jornal levando uma gravata junto com outros colegas invasores...
Mas alguns poucos anos depois e já estava instalado num lote de papel passado em cartório, carnê de iptu, conta de luz e tudo que se pode definir como moradia. Claro que, na cidade, ainda faltavam algumas coisitas essenciais, tais como escola, posto de saúde, delegacia, mas que os deputados distritais prometiam chegar logo, logo.

E ele lá dentro daquele inferno na batalha para se virar. Foi quando resolveu criar sua própria igreja. Por que não? Era preciso muita fé, muita oração, para sobreviver naquele gueto às margens da capital federal. Olhou em volta, e a chuva castigava os frágeis barracos do Recanto. Dia de tromba d'água brasiliense. Sai de baixo.

Mas para ele era um dia lindo para se lançar uma sementinha no coração dos sofridos vizinhos. Que chuva maravilhosa, meu bom Jesus, quantos trovões, relâmpagos, é o sinal de Deus, é o sinal do altíssimo, vejam, ouçam, entendam que a hora está chegando...
E saiu gritando pelas ruas esburacadas, livrando-se das poças, escondendo-se dos raios, sem camisa, com uma bíblia na mão, um copo com água na outra colhendo os pingos, correndo, correndo, correndo, como se tivesse perdido o juízo.

Foi a primeira grande aparição de Bebel, o antibelzebu, o pastor e líder da nova Igreja Celular da Graça do Divino Enviado, a ICGDE, com seus iniciais cinco adeptos. Não precisava de muita gente agora, pois queria entender muita coisa ainda, antes de começar a ampliar o império.

O problema maior é que não sabia ler. Era louco pra saber das histórias bíblicas no original e não só contadas pelos pastores concorrentes. Gastava muita memória ouvindo as pregações das redondezas, para repetir nos cultos da ICGDE, mesmo que fosse para apenas cinco adeptos. Eram seis com ele. Vizinhos que estavam indecisos do ponto de vista religioso e que acabaram cedendo à honírica visão dele se esbaforindo durante a tromba d'água.

Mesmo assim levava R$ 1,99 de cada adepto nas sessões do fala que eu te escuto, que já dava para o lanche comunitário dos domingos e para o cigarro escondido e para a coca-cola diária da tarde. Precisava aprender novas histórias daquele livro maravilhoso que não conseguia ler, e que, quase perdeu no meio da marcante tempestade.

Como não tinha muito tempo, resolveu inventar casos que teriam ocorrido com Abraão, Josué, Noé, Moisés, essa turma. Acabara de ver num telejornal da tv, uma série de reportagens sobre Abraão, feita por um jornalista enviado especial à terra santa, contando detalhes da vida e obra daquele santo homem.

Mas deu galho. Coisa boba, mas deu. Um tal de Moisés, porteiro de ministério, concursado, ou seja, autoridade no Recanto, achou que era com ele aquela história de abrir o mar vermelho pra toda a rapaziada entrar, e encheu Bebel de bolachas na frente de todos os cinco fiéis. O Moisés, o da portaria, provou que não era fruta coisa nenhuma e que o pastor fosse enganar em outro lugar, não no Recanto das Emas, que era terra de macho fiel.

Postado por Roberto Borges

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