sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

SEVERINA SHAKESPEARE DA SILVA

Vou vender água mineral na Rodoviária mas não me vendo, não sou qualquer uma. Compro o copinho no mercado a cinquenta centavos e vendo por um real aos passageiros. Ganho 100%.

Mas para o serviço público não vou. Não vou morrer numa repartição pública. Eu sou uma artista, preciso respirar, ser livre, não ter hora pra entrar nem para sair nem para nada.

E a mãe respondia com o mesmo amor de sempre que o pai dela já havia morrido gastando o que não tinha em teatro e que as duas precisavam se virar que a vida não era fácil pra quem decidia viver de arte.

Biusinha respirava fundo e repetia que ainda seria uma atriz. E de peças clássicas, Brecht, Strindberg, Beckett, mesmo morando na periferia de Brasília, pobre, pobre, pobre de dar dó, coitada, que aquilo não era vida.

Severina Shakespeare da Silva. De pai teatrólogo fracassado cearense e mãe artista plástica pernambucana fracassada também. Por isso crescera ouvindo Pavarotti, Chopin, Beethoven, na maior pindaíba.

A família veio do Nordeste em busca do paraíso prometido pela propaganda enganosa da construção da nova capital. Quando o casal chegou, Brasília era só barro vermelho, lama, vazio, tédio.

O padre não quis batizar Biusinha com aquele nome estranho, mas no cartório foi mole, os pais conseguiram prestar a homenagem merecida ao teatrólogo maior da humanidade.

Na escola é que era chato, ninguém sabia pronunciar direito, sheike o quê?, espíare?, espia? Foi assim até virar gente entendida e passar a achar graça naquela comédia que era a vida.

Fez escola pública direitinho, sem faltar um dia, aguentando o besteirol todo com dignidade, a ausência dos professores, as carteiras quebradas, os banheiros imundos.

Mas era no quarto do barraco do Gama, cidade-satélite de Brasília - onde foram parar depois da construção da capital - que Biusinha era rainha. Lia toda a bibliografia teatral que caía em suas mãos.

Encontrou numa lixeira da Esplanada dos Ministérios uma coleção maravilhosa com os maiores clássicos do teatro mundial. Coisa dos espíritos, milagre de Jesus, macumba do santo, sei lá o que foi.

Ainda tentou devolver ao pessoal do Teatro Nacional onde estava a lixeira da Esplanada, sem êxito, pode levar, não temos mais espaço aqui, vai como doação, menina, caia fora, suma daqui.

No barraco, a mãe desenhava, mas vivia mesmo do emprego de merendeira na escola pública onde a filha aprendera a ler; viúva, e com o maior medo de que a filha não servisse pra nada na vida, além de uma saudade arretada das maluquices do marido teatrólogo.

Ele escreveu peças que nunca foram montadas, guardava tudo numa caixa grande de papelão que ela queimou depois da morte dele, que, aliás, foi uma dádiva, um sossego pra duas, pois ele gastava todo salário de porteiro de ministério da Justiça em cachaça, na malvada cinquenta e um.

Mas retomemos ao início para acrescentar que Biusinha discutia com a mãe por causa de um emprego público de servente que acabara de ser oferecido pelo diretor da escola. Era pegar ou largar, não haveria outra boa oportunidade como aquela, minha filha, juízo, juízo.

Biusinha passaria fácil, fácil no concurso público, mas sabe como é coração de artista, ninguém domina, não tem comando, bate muito depressa que deixa sem fôlego tudo em volta, razão, juízo, medo, paixão, dor, agonia, desgraça, sufoco.

E ainda mais agora que ela acabara de ler uma peça do Nélson Rodrigues e se imaginara fazendo a personagem, num lindo dia de casa cheia, o pai assistindo, agora abstêmio, a platéia caladinha, caladinha, diante da genialidade febril das cenas perfeitas.

Olhou pra mãe como quem não se importa se um raio cair na cabeça naquele momento, respirou aquele ar que vem do fundo da alma e, pediu tempo, intervalo, em respeito ao medo das duas do futuro.

Apenas adiou a resposta para mais tarde, afinal era difícil, muito difícil, para uma atriz, aceitar ali, naquele momento, que passaria o resto da vida varrendo o chão de uma escola, assinando o ponto, como de fato aconteceu.

Postado por Roberto Borges

Um comentário:

  1. Nem sempre a gente faz o que quer. Mas, levando em consideração que a vida passa rápido, não custa muito tentar.

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