Era a primeira vez que via um homem de terno e gravata, de cócoras, chorando no quintal de casa.
Chegou mais perto e olhou, olhou, olhou, foi se aproximando com um medo cada vez maior...
O tio não tomava jeito mesmo, enchia a cara, e aprontava cada uma; até que muitas, às vezes, bem engraçadas.
Mas daquela vez ficou realmente chocado em ver aquele homem tão bom para ele naquela cena deprimente, e recebeu um sinal.
Bem mais próximo, rosto quase colado ao do tio, quis saber o por quê, e ganhou as costumeiras bolas de gude.
Meia dúzia delas num saco de papel amassado com o símbolo do Sport Recife - o papai da cidade.
Os dois torciam pelo Sport, e o tio não falhava nunca, toda vez que aparecia, trazia as bolinhas.
Vermelhas e pretas, as cores do Leão da Ilha, que levavam os dois a uma cumplicidade profunda.
Nem deu tempo de segurar as bolinhas e a mãe já gritou ordenando que ele entrasse para o terraço.
Que deixasse o tio em paz, que aquilo não era assunto pra menino, que estava na hora do banho.
Fez que saiu para o banho e ficou escutando toda a conversa entre a mãe e o tio escondido no terraço.
E ouviu que daquela vez o tio ía se matar de verdade porque a esposa havia fugido com os filhos.
E que a vida não tinha mais nenhum sentido para um homem sem emprego sem lar sem nada.
E que a reação da mãe era a mesma de sempre, no começo reclamava, reclamava e depois fazia as pases.
Lembrava ao tio que ele ainda tinha a ela, mais a mãe deles dois, e que eram uma família unida.
E que ele parasse de beber, pensasse na esposa e nos filhos dele, que a vida era assim de altos e baixos.
Mas para ele havia algo de novo ali e que não iria terminar bem, pois nunca vira o tio e a mãe assim.
Os dois pareciam cansados daquilo, quase toda semana ela saía à procura dele pelas ruas.
E o encontrava dormindo nas calçadas, bêbado, bêbado, de dar pena aos passantes que vinham avisar.
Ela chamava o filho e os dois saíam pelo bairro atrás do bêbado, rezando para encontrá-lo com vida.
O menino cantava o hino do Sport, em silêncio, como numa reza baixinha, toda vez que encontravam o tio.
O resgate era patético, ele todo vomitado, às vezes mijado, com fezes, e a irmã dava banho, limpava ele todo.
O menino ajudando, com medo, com nojo, com pena, com vontade de fechar os olhos e sumir dali.
Sem saber ainda que haveriam momentos muito mais difíceis como os que enfrentou no manicômio.
O tio terminou sendo internado num asilo de loucos e os dias de visitas, aos domingos, eram um inferno.
Muitos doidos em volta até chegar ao tio cabisbaixo, sempre calado, sem as bolinhas do Sport.
A mãe acariciava a cabeça do irmão com carinho e dizia baixinho que tudo iria passar, que, enfim...
O menino ficava olhando, olhando, mas não se aproximava muito, preferia lembrar dos dois vibrando nos gols do Sport.
E foi assim a vida dos três por um longo e sofrido período de resgates e internações e delírios e convulsões.
Mas ao ver o tio, como agora, pela fresta da parede do terraço, acocorado no quintal, de terno, sentiu o sinal num calafrio.
Foi como naquele gol contra do Sport que calou a Ilha e deixou tio e sobrinho na lona total.
Nem o tio nem a irmã aguentavam mais tanta humilhação na vizinhança, que aquilo não era vida.
Correu para o banheiro logo depois que a mãe despachou o tio para a casa dele debaixo de esporros.
No outro dia, a empregada do tio apareceu com a notícia de que ele tinha bebido veneno pra rato.
Foi ao enterro com as bolinhas de gude rubro-negras e atirou-as uma a uma no caixão do tio, rezando o hino do Sport.
Cazá, cazá, cazá, cazá, cazá, a turma é mesmo boa, é mesmo da fuzarca, Sport, Sport, Sport, assim mesmo, bem baixinho...
Postado por Roberto Borges
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
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Esse texto tem muita cara de Recife. E olha que nem morei tanto tempo lá assim.
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