O céu amanhecera nublado na quarta-feira. Elinaldo Santarém foi à janela da sala, abriu uma fresta na cortina e olhou as nuvens. Calculou que, sem demora, cairia uma chuva fina. Tentou lembrar onde tinha colocado o guarda-chuva. Há meses não o usava. Aposentado da Rede Ferroviária, viúvo e solitário, toda quarta Elinaldo tinha um compromisso familiar. Pegava o trem e ia visitar a única irmã, mais velha do que ele, residente no subúrbio.
Vinte minutos depois, Elinaldo voltou à janela e olhou mais uma vez para o céu. Talvez tenha errado o cálculo, pensou, e só comece a chover à tarde. Também estava em dúvida se deveria sair de casa naquela quarta. Gripava com facilidade. Permaneceu olhando a rua e se deixou levar por divagações a respeito do tempo.
Elinaldo chegou a tempo de pegar o trem das oito na estação central. Na viagem de quarenta minutos em direção ao subúrbio, Elinaldo gostava de sentar na cadeira da janela. Imaginar como seria a vida dos transeuntes pelos quais o trem passava veloz e indiferente ajudava a viagem a ser mais rápida. Um passatempo que dispensava, claro, qualquer tipo de envolvimento afetivo. O trem passava, e, por ele, as pessoas, todas desconhecidas do aposentado, mas cujas vidas estavam sendo reescritas pela mente fantasiosa de Elinaldo, sem que, obviamente, elas soubessem.
A moça caminha com uma sombrinha de fabricação chinesa. Até então, ela ia à escola. Mas, sem saber bem por quê, repentinamente, tomou outro rumo, diferente do que havia planejado. No próximo quarteirão, irá esbarrar, casualmente, num rapaz, com cara de balconista de farmácia. Exatamente como acontece nos scripts das novelas, ele apanha a sombrinha e pede desculpas à moça. Amor à primeira vista? Em pouco tempo, viverão juntos. Assim começam os romances, refletia o aposentado, ao recordar uma antiga canção, enquanto a paisagem mudava no ritmo dos trilhos.
Mal Elinaldo terminara de refazer o roteiro imaginário da moça da sombrinha, ouviu um forte estrondo. Fração de segundo. Tempo suficiente apenas para perceber que o mundo se transformara numa montanha de ferros distorcidos e que tudo estava de cabeça para baixo. Ainda conseguiu ver a placa vermelha de que era proibido fumar. Desmaiou.
Naquela manhã de quarta-feira, Elinaldo saiu atrasado de casa, sem tomar café. Esperava pegar o trem das oito, na estação central. Acelerou o passo, mas logo compreendeu a inutilidade de correr. O trem saía pontualmente às oito, não esperava por ninguém. Muito menos por um aposentado que iria visitar a irmã. Poderia pegar o das oito e meia. Afinal, não tinha pressa. Elinaldo chegou à estação alguns minutos depois da partida do trem. Comprou o bilhete do próximo horário e lembrou que não havia tomado café.
Entrou no primeiro bar, na parte externa da estação. Café com leite e pão com ovo. A pedida de sempre. Naquela hora da manhã, era o único cliente e escolheu uma mesa perto da porta da entrada. Ficou olhando para a rua, enquanto a garçonete ligava a cafeteira. Minutos depois, entra no bar um cara sem camisa, com um facão na mão direita. Os olhos alucinados não deixavam dúvida: um louco furioso escapara do hospício. Sem dizer uma palavra, dirigiu-se à mesa de Elinaldo e, num gesto brusco, enfiou-lhe o facão no peito. O jato de sangue respingou no rosto do agressor. Antes de cair, Elinaldo ainda conseguiu olhar, num pedaço de céu, as nuvens se mancharem de tonalidade vermelha.
Como fazia toda quarta-feira, Elinaldo saiu cedo de casa. Detestava perder o trem das oito. Não gostava de criar expectativas negativas na única irmã. Para ela, a visita de Elinaldo era sagrada, aguardada com ansiedade durante toda a semana. Além disso, a irmã morava longe. Perder o trem das oito significava complicar o restante da manhã. Antes de chegar à estação central, Elinaldo parou numa banca de revistas para comprar o jornal. Depois, caminhou em direção à faixa de pedestres para atravessar, com segurança, a avenida. Posicionou-se no meio-fio à espera do semáforo abrir. Lembrou que precisava comprar umas maçãs. Sem que notasse, um cavalo, que momentos antes pastava solto num terreno baldio, avançou pela calçada e cravou os dentes nas costas de Elinaldo. A dor foi dilacerante, tanta que o aposentado perdeu, de imediato, os sentidos. Não sem antes olhar, pela última vez, para o sinal de trânsito, que continuava vermelho para os pedestres.
O céu amanhecera nublado naquela manhã da quarta-feira. Elinaldo Santarém foi até a janela da sala, abriu uma fresta na cortina e olhou as nuvens. Calculou que, daqui a pouco, cairia uma chuva fina. Sentou-se no sofá e começou a ler a seção de horóscopo do jornal. Ficou surpreso. O dia não era recomendável para os nascidos em Escorpião saírem de casa. Os compromissos agendados em locais distantes deveriam ser adiados. A combinação de Marte, o planeta vermelho, com Júpiter previa a possibilidade de ocorrerem acidentes graves com as pessoas regidas por aquele signo.
Depois de dobrar o jornal, o aposentado resolveu que naquela quarta não iria visitar a única irmã. Nem mesmo sabia onde tinha colocado o guarda-chuva. Ficaria em casa. Lá fora, caía uma chuva fina, molhando as árvores, a calçada, a vida. Voltou a vestir o pijama e colocou um filme faroeste no DVD
No velho Oeste, o sol brilhava. Um sol vermelho, de dois canos.
Postado por Amin Stepple
quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
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