Pachula sempre viveu no circo. Na verdade, a troupe o adotou aos sete anos de idade, quando o encontrou escondido num trailer, numa das temporadas pelo sertão baiano. A infância se passou no trato dos animais e no picadeiro, a única escola desse artista nato. Com o tempo, Pachula aprendeu todos os truques que o transformaram numa das atrações do Circo Babilônia. Com o talento compactado em um metro e oito centímetros de altura, era o único anão do divertido grupo de palhaços. As piadas e os pastelões arrancavam gargalhadas e garantiam a bilheteria. A caravana do Babilônia cansou de contar quantas vezes percorreu o mapa empoeirado do Brasil. Mas, um dia, o público sumiu de vez, aprisionado pela luz azulada das novelas.
--- Cansei da vida na lona.
Repetia Pachula, a iludir a si mesmo, sem admitir que o espetáculo acabara. Às vezes o anão cedia à nostalgia. Lembrava do circo indo de cidade em cidade, dos tempos impermanentes da vida nômade. Sacrificada, diga-se, mas refúgio seguro contra o tédio. Os aplausos da distinta platéia recompensavam a falta de conforto, os riscos e até os amores abandonados.
--- O público sabe reconhecer o verdadeiro artista.
Disso Pachula não tinha dúvida, nada de queixas. Amores abandonados? Sim, lona que se arma e desarma num terreno baldio. Ao contrário dele, a grande paixão de Pachula não tinha medo de altura: a trapezista Denise. Loura de um metro e oitenta, sorriso aberto, confiante de quem jamais teme a morte. Artista perfeita, de gestos precisos, impulsos matemáticos.
__ E mais: quentíssima na cama.
Confidenciava o amante Pachula. Aliás, as aptidões de Denise nos lances do trapézio sexual quase causam uma tragédia. Certa noite, entusiasmada, a trapezista, com suas coxas grossas e firmes acostumadas aos desafios das alturas, deu uma prolongada “chave de pernas” em Pachula. O anão por pouco, muito pouco, não morreu asfixiado entre as pernas da namorada.
___Cheguei a ficar roxo!
Com o fim das jornadas circenses, Denise conquistou para si um destino de folhetim: desapareceu na estrada com um caixeiro-viajante. Pachula, dono de voz bonita e potente, decidiu sobreviver como cover do cantor Nelson Ned. As apresentações nos bares davam uns trocados e algumas refeições. Numa noite, ele foi apresentado a um empresário de shows. De lábia sedutora, Mário Aciolly convenceu Pachula de que ele era um produto artístico fácil de vender. O que faltava?
___Ninguém imita com tanta perfeição Nelson Ned. Ao ouvi-lo pela primeira vez, confesso que pensei que era o próprio Nelson. Além do mais, você é a cara dele e do mesmo tamanho. A partir de agora, você é o Nelson Ned.
Em pouco tempo, o esperto Mário Aciolly agendou vários espetáculos em cidades do interior. O show tinha forte apelo publicitário: “A VOLTA DE NELSON NED”. Casa sempre cheia, Pachula arrasava na interpretação dos sucessos de Nelson Ned.
___Vamos ficar ricos, milionários.
É o que se lia no olho grande e gordo do empresário, eufórico por ter fechado mais uma longa turnê, agora pelo interior da Paraíba.
Em Zabelê, terceira cidade programada do show “A VOLTA DE NELSON NED”, logo todos os ingressos foram vendidos. O empresário descobriu que até fã-clube o pequeno grande cantor brasileiro tinha em Zabelê. Gripado e febril, Pachula não estava na melhor forma. Tentou adiar a apresentação, mas Aciolly, receoso do prejuízo com a devolução dos ingresso, não concordou.
___ Vai cantar de qualquer jeito.
Iniciado o show, Pachula esqueceu algumas das letras do repertório, provocando risos e piadas na platéia. A situação se complicou ao desafinar quando começou a cantar “eu hoje estou tão triste, eu precisava tanto conversar com Deus...”, um clássico que sempre levava o público às lágrimas. Um gaiato não se conteve e gritou:
___ Esse anão não é Nelson Ned, porra nenhuma. Nelson Ned é menor do que ele uns quinze centímetros.
Logo, outro, de chapéu de couro, berrou:
---Sai daí, toco de gente. Vai enrolar tua mãe.
Do fundo do salão lotado, uma mulher, de cabelo oxigenado, vestida com pouquíssima roupa, esbravejou:
___Esse anão não canta nada. É do Paraguai, é do Paraguai!
Era a senha que faltava para a massa avançar, enfurecida, sobre o palco, à caça do anão.
Na delegacia de Zabelê, Pachula passou duas semanas detido. Tempo suficiente para se recuperar dos hematomas e voltar a exercitar a voz. Ajudaram-no as longas serenatas incentivadas pelos outros presos e pela lua imaginária das canções populares. Nem os meganhas escondiam a emoção quando ouviam a voz aveludada de Pachula clamar, entre as grades enferrujadas, que “precisava tanto conversar com Deus...”
Na manhã em que foi solto, o anão recebeu como consolo um dos maiores elogios de sua curta carreira. Elogio sincero, sincero, do comissário de plantão:
__Você, Pachula, canta bem melhor do que Nelson Ned.
Postado por Amin Stepple
quinta-feira, 8 de janeiro de 2009
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