sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A SESSENTONA GATINHA

Acordou preocupada com o fim do trema. Nervosa, ansiosa, estressada: porque aquilo não podia, sem trema não dava. Como arguir sem ele?. Fica faltando um pedaço, e coisa e tal, e assim não dá, não pode ser...

Nem a promessa do profesror de português de enviar um e-mail para a academia brasileira de letras esculhambando lhe acalmou. Queria mais. Queria desabafar, cadê o padre, o pastor, o psiquiatra, o amigo gay, enfim, não haveria vida sem o trema.

Coitada. Era assim com ela. Tinha tudo, mas entediada até a medula. Servidora pública, de carreira, aposentada, e com um contracheque de gerar aplausos cada vez que era emitido. Alguma coisa entre 20 e 25 pastilhas valdas, incluindo as gratificações, os quinquênios,etc.

Mas o coração vazio. Faltava alguma coisa para aquele corpinho de sessenta aninhos. Sim, porque era ga-ti-nha. Tudo em cima. Várias plásticas, lipos, recauchutagens. Estava inteira para o primeiro momento, o grande dia, a hora que a juropoca iria piar.

Isso mesmo: v-i-r-g-e-m. Segredo de Estado. Não comentava nem com ela mesma que era para não vazar. Eu sei porque sou o autor e, quem é escritor sabe, que a gente precisa contar tudo dos personagens, não guardar nada, jogar tudo pra fora, senão explode de vez.

Raimunda ou Ray ou Raysinha - com y mesmo, para os mais chegados, precisava mudar. Mas muito exigente, tornava tudo mais difícil. Queria um homem pra chamar de seu, desde que rolasse, também, passeio de mão dada em shopping, beijo na boca demorado e sessões de vídeo em casa, com clássicos tipo A Noviça Rebelde, que ela já havia assistido a mais de 50 vezes.

Do outro lado da península dos Ministros, onde ficava a mansão da Raysinha, - que ela dividia com um cachorrinho muito sapeca, (Tobby e eu), e com uma governanta durona, doida pela cantora Ana Carolina, da fase antes do Seu Jorge; - vivia Severino, o Biu Pé de Mesa, - mais precisamente na zona leste da cidade-satélite do Gama, a mais violenta do Distrito Federal.

Muito bem. Acho que já estamos preparados para o encontro dessas duas almas completamente distintas. Tão longe, mas tão perto. É verdade que circulavam pelos mesmos corredores do Congresso Nacional, sem nunca terem se percebido com tanta intensidade, como naquela tarde fria e seca e solitária do planalto central do Brasil.

Ela, mesmo aposentada, não deixava de comparecer ao setor da Taquigrafia onde ralou por mais de três décadas, só que agora apenas como revendedora de produtos de beleza, desculpa boba para reencontrar as amigas.

E ele, agente de portaria, mas da entrada contrária à que Raysinha costumava entrar.

Quem conhece o Congresso sabe que são muitas as portarias que dão acesso à casa do povo, e que, talvez, por isso, tenha tanta gente vagabundeando pelos corredores, fazendo hora, matando o tempo, usufruindo do ar condicionado maravilhoso de lá.

Severino ganhou a vaga na portaria depois de namorar o chefe da empresa de limpeza onde trabalhava, mereceu do patrão o apelido de Seu Jorge, antes da fase da Ana Carolina: começou varrendo o chão, mas o chefe logo viu que aquilo não era homem pra gastar energia em serviço pesado, e promoveu Biusinho para o cargo que o tornou mais visível para o coração de Raysinha.

Os dois, finalmente, na mesma portaria, por um acaso divino, e foi tesão à primeira vista. Raysinha havia escorregado, o salto quebrou, e Biusinho, agora mais Seu Jorge do que nunca, entrou em cena para salvar aquela gatinha sessentona caída, desprotegida, abandonada. E fez questão de leva-la ao carro, equilibrando-a em seus longos ombros, com suas arrebatadoras garras.

Raysinha torcera o pé, e o nosso herói assumiu o volante até à mansão. Durante a viagem pela Esplanada dos Ministérios, silêncio sepulcral. Biusinho, apesar de só pensar naquilo, disfarçava, olhando as fachadas daqueles prédios todos iguais, sem criatividade nenhuma.
E ela, por alguns momentos, pensou ser a Julie Andrews, como em A Noviça Rebelde, ser a mulher que chega para organizar a vida de um homem, mesmo rodeado de filhos, sei lá, mil coisas, sabe?

Primeiro encontro não rola nada. É praxe. Trocaram e-mails durante meses. Biusinho numa Lan house e ela na sala da Taquigrafia. As colegas curiosas, a governanta enciumada, o cachorrinho cada vez mais arredio. Até o dia em que Raysinha aceitou o convite e foi ao ensaio da Aruc, a associação recreativa dos unidos do Cruzeiro, bairro de classe méia baixa de Brasília. Uma roda de samba nem na Península dos Ministros nem na horripilante Gama.

Loucura, loucura, loucura. A mulher se encontrou. Aquele era o homem. Saiu da escola de samba pronta para o abate. Nem precisa contar aqui o kama sutra que Biusinho aprontou. Talvez citar algumas posições praticadas, tais como: chave-angular, pão-de-açúcar, estava-escrito-nas-estrelas, eram-os-deuses-astronautas? e a apoteótica, se-eu-quiser-falar-com-deus.

Foi preto no branco. Pra dar em casamento. Comprou moto pra Biusinho, celular pós, terno de primeira, cartão de crédito liberado...Uma grande farra que, com ela era assim, nada de economia quando se está diante de um grande amor, e no caso dele, bota grande nisso, como já vimos no primeiro apelido.

Raysinha estava cega. As amigas invejosas enchiam o saco. Não pode, não pode, não pode, onde já se viu, mesmo que ele pareça com Seu Jorge, aquele volume todo, não justifica esse gasto desenfreado de nossa amiga com um homem que ela acabou de conhecer. Mas nossa sessentona gatinha queria mais era viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar na certeza de ser uma eterna aprendiz... As noites na Aruc eram longas, muito longas.

E o romance só não terminou bem porque a amante de Biu cansou da mordomia que a namorada dele proporcionava ao casal sambista. Matilde acordou um dia atravessada do juízo e deu um basta. Era ela ou a coroa sessentona e gatinha coisa nenhuma. Que Biu tomasse as providências, antes que ela pegasse pesado, leia-se aqui: iria esbolachar a gata. E disse de um jeito que só mulher decidida sabe, do tipo que não há coisa ruim que ela não possa piorar.

O Cruzeiro nunca havia presenciado tanta baixaria. O pau comeu. Metade foi pra delegacia, e a outra para o Hospital de Base. Pra resumir, Raysinha entrou na justiça para recuperar os bens ofertados naquela fase Ana Carolina e Seu Jorge que os dois viveram. E Biusinho fugiu com a primeira-dama para outra cidade-satélite, local incerto e ignorado, como ficou no laudo policial, aparecendo só de quando em vez nos ensaios da Aruc.

Postado por Roberto Borges

Um comentário:

  1. Gostei muito das histórias. Todas lidas devidamente. Continuem o bom trabalho.

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