___ Beber é uma virtude. Se embriagar é canalhice.
Os amigos de farra já sabiam. Quando Felicinho disparava a frase na mesa de bar, logo depois de tomar a primeira dose de Bacardi, a virtude ia, aos poucos, perdendo terreno para a canalhice. Entenda-se aqui por canalhice certa ousadia desmedida, como alisar a bunda das moças. Sem, claro, a devida autorização. Mas Felicinho era assim. E os boêmios achavam graça naquela irreverência, quase loucura.
Solteirão aos 41 anos, Felicinho poderia ser definido à moda antiga: um rapaz velho. Morava sozinho num pequeno apartamento no Torreão. Mas ainda vivia sob as ordens da vigilante mãe, uma senhora sertaneja, afável e de caráter retilíneo. Sóbrio, o rapaz velho era tímido, educadíssimo, incapaz de uma lorota ou indelicadeza de qualquer espécie. Bêbado, outra personalidade, extrovertido, muitas vezes irreconhecível, o cão chupando manga.
Em defesa de Felicinho diga-se que ele vinha gradativamente reduzindo o número de farras. Em compensação, aumentava a quantidade sequenciada de dias em que se dedicava aos prazeres do álcool. Quando decidia emendar a noitada, o dia seguinte também virava noite, até que o sono o abatesse em pleno voo etílico.
Foi numa dessas jornadas noturnas que Felicinho encontrou a morte o esperando no corredor do quinto andar do prédio onde residia. Embriagado, pegou o elevador, desceu no quinto, e aí começou o drama. Felicinho pensou que estava no seu quarto e tirou toda a roupa para dormir. Logo adormeceu no chão frio. Sono profundo, saldo acumulado de três dias e noites de saturnais baladas.
Às seis da manhã, a doméstica Ester foi comprar pão e leite. Assim que colocou os pés no corredor, tomou um grande susto. Viu Felicinho deitado, completamente nu. Saiu a correr pelo prédio:
___ Um homem morto! Tem um homem morto no quinto andar!
O síndico, um sujeito que havia servido na Segunda Guerra Mundial e ostentava falsas medalhas por bravura, foi um dos primeiros a chegar. Constatou que o rapaz velho tinha, de fato, falecido. Proibiu a circulação de crianças no corredor e pediu a compreensão dos moradores para evitar tumulto, até a chegada da funerária.
Como sempre, os agentes funerários foram rápidos, eficientes e frios. Trabalhoso foi vestir o único terno disponível, gentilmente cedido pelo pracinha da FEB.
Em poucas horas, Felicinho estava sendo velado pelos amigos pinguços e poucos parentes. A mãe, chorosa, inconsolável. Mas ainda tinha força para insistir que o enterro fosse feito apenas no dia seguinte. Alguns familiares já estavam a caminho, vindos do Rio de Janeiro.
Na manhã do sepultamento, depois da alma do boêmio ter sido bem recomendada aos céus em missa de corpo presente, se escuta um sonoro gemido. Na verdade, um arroto choco, produto de uma ressaca brutal. O pânico tomou conta da sala do velório. Os parentes choravam, o padre se benzia, os amigos aterrorizados, enquanto Felicinho se levantava lentamente do caixão. Com cara de sono, sem entender o que estava acontecendo.
Uma prima carioca, Fátima, amasiada com um traficante do morro do Borel, com o abominável sotaque de Madureira, proclamava:
___ É milagre, um verdadeiro milagre.
Refeitos do susto e do equívoco, os amigos de copo e de velório decidiram ir ao bar da esquina para comemorar a “ressurreição” de Felicinho. Ou mais uma de suas canalhices.
Desidratado, abatido, com uma ressaca braba, dessas de cortar com gilete, mas emocionado, Felicinho abraçou e beijou a matriarca sertaneja. Ainda com a voz cavernosa, disse:
___ Mãe, tenho de tirar uma segunda certidão de nascimento no Cartório João Roma. Nasci novamente.
Postado por Amin Stepple
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
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